segunda-feira, dezembro 31, 2007

DESEJOSO

DESEJOSO


quero-te para choque
para chocolate, para
cara a cara
meu topázio, ônix
minha jóia rara
minha cara fênix
quero-te para o pó
para o posso tudo ou nada
quero-te por perto
quero-te concreto
quero te ser, ave
teu reflexo, reflito
não te quero para entrave
quero-te para atrito

quinta-feira, dezembro 27, 2007

.I

A chuva me prende ao beiral do abandono.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

MOONLHER

MOONLHER
para Sâmalla



tu tens o mar no teu quarto
que amanhece sempre que te acordas
espalhando conchas sobre a cama
e areia no chão que pisas descalça

o céu pousa em teus cabelos vermelhos
e é aurora teu olhar sonolento
toda a maresia se concentra no teu hálito
quando falas tal qual uma gaivota sorridente

há ondas que se formam nas curvas da tua cintura
e vêm quebrar na tua virilha
assanhando as algas das tuas costas
e brincando nas tuas cavidades submersas

e, quando adormeces, eis o crepúsculo!
é nesta hora que toda a natureza paira
e observa o quanto deus foi sábio
restringindo a imensidão às extremidades do teu corpo

quinta-feira, dezembro 20, 2007

IMPROVISO SOBRE ONTEM

IMPROVISO SOBRE ONTEM


revivendo ou recriando-
___as?

reestruturando as ligações
para tapar fendas espaciais
cobrindo com cimento
os defeitos transversais
como olvidar os ais?
como desmistificar os acertos
temporais
entre eu e elas?
como ser convincente
da falta que não farão?
revivendo ou recriando-as?
como catalogar?
lembranças sempre lembranças
vidas embalsamadas
interferências no galgar
dos que se atrevem a reviver
ou simplesmente recriar

sexta-feira, dezembro 14, 2007

DECLARAÇÃO ÚLTIMA

DECLARAÇÃO ÚLTIMA


do que fui o que sou
um freqüente entrave
um lamento podado
escondido e mostrado

do que foste o que és
do que és nada foste
senão este rir
que se riu também rui
e se rio não é do
que sou, mas do que fui

do que fui o que sou
um freqüente entrave
um lamento podado
escondido e mostrado

quarta-feira, dezembro 12, 2007

DO SONHO CONTÍNUO

DO SONHO CONTÍNUO


Todos os dias, ao acordar, eles trazem consigo uma recordação de seus sonhos: tampas de garrafa, vestidos manchados, sapatos quadriculados, penas de andorinhas mortas, sofás vermelhos, colares de pérolas, escadas de madeira degradadas pela ação dos cupins. Os sonhos, nem sempre fixados, se perdem nos escoamentos da memória; os objetos, porém, enfeitam as casas, ruas, escritórios, bares e universidades de suas vidas reais. Distraídos, eles não percebem o que passou a existir de ontem para hoje em seu mundo, e não se dão conta do que trazem consigo das noites desacordados.
Não se sabe exatamente quando aconteceu: tantas foram as lembranças trazidas dos sonhos, e tão presentes eles se tornaram, que não se pode enxergar a linha que divisa realidade e imaginação. Já não faz diferença acreditar que se vive na realidade se ao sair de casa eles calçam sapatos de um passado onírico. Tampouco vale crer que os sonhos são formas etéreas impossíveis de se alcançar se todos os dias eles confundem um rosto real com um sonhado em noites anteriores; e que são, sim, o mesmo.

sexta-feira, novembro 30, 2007

AGRIPINO E A NOITE

Agripino e a Noite


Escurece no canavial e todos os vazios tomam a consistência abismal da noite. Um besouro que voava sobre o asfalto, à margem das estacas de cana, desviando-se do feixe luminoso do farol de um automóvel, penetra, zunindo, a densa vegetação e, ao ser engolido pelo breu, cala de imediato. Instantes depois, reaparece um pouco mais a frente com seu zunzum rasgado, mas é novamente sugado pelo silêncio negro. E não retorna.
O que durante o dia serve como passagem entre as folhas ásperas do canavial, seus cortantes espaços desocupados, sob a ocorrência de um céu ausente de luar e coberto por espessas nuvens escuras, torna-se uma confusa pasta preta, cuja matéria consiste em uma solidez vaporosa que pode tanto perpassar o corpo do besouro que ali se aventura cegamente, como bloqueá-lo de súbito. No misterioso decorrer das madrugadas, as distâncias se comprimem. Porém o que se chocou ao besouro atordoado não foi uma nesga da noite incorporada ao vazio. Poderia muito bem ter sido, e até seria mais aceitável, sendo tão mais palpável, àquela hora e à distância daquele canavial ao mais próximo ser humano, a escuridão sem forma, mas absoluta, do que o corpo incerto das coisas existentes, que, sem a iluminação adequada, aos olhos humanos, parecem menos dignas de confiança. Sob a inexistente luz esbranquiçada das estrelas encobertas, a parede de tijolos é quase transponível.
Trata-se de uma residência no meio do canavial, tão rente à vegetação que deve ter brotado do solo árido. Possivelmente fora plantada, como tudo no local. E nesta casa vive Agripino. Sentado frente a uma mesa solitária, entediado e ansioso, raspando com a unha a madeira degradada do móvel, ele assiste a passagem das horas. É muito monótono, para Agripino, viver naquele fim de lugar algum. Nunca há o que fazer. Não pode trabalhar no cultivo da cana-de-açúcar, ou mesmo em seu corte, pois é sempre escuro demais; também não se dedica a trabalhos domésticos, sendo tão tarde para este tipo de atividade; não há como sair para brincar, tampouco consegue alguém para conversar, já que é sempre hora de dormir. Desta forma, está sozinho em seu alvéolo noturno, onde, se passível é de se imaginar, a noite é ainda mais apertada e lenta.
O besouro pousou próximo à sua mão. No breu orgânico da casa, todo ser vivo parecia possuir uma claridade própria, e foi através da luz do besouro, caracterizada pelo zinido indiferente de suas asas, que Agripino atentou à sua presença. A mão do homem e o corpo do inseto encontravam-se a poucos centímetros de distância: as asas deste estremeciam enquanto os dedos daquele tamborilavam. Os olhos do homem analisavam a movimentação estranha do inseto sobre a mesa: insegura, mas precisa e rápida; rígida, sólida. Impossível seria captar tudo o que meditou Agripino no decorrer do tempo que despenderam a se encarar, até que os primeiros filetes de sol despontaram pelas minúsculas frestas do telhado a desintegrar o corpo da noite. Um raio de luz muito branco pousou sobre a mesa de madeira, exatamente no ponto em que jazia a mão de Agripino, que desapareceu de imediato, assim como sumiu todo o seu corpo à medida que a claridade da manhã penetrava a penumbra da casa e varria a presença da escuridão como faz uma lâmpada.
O besouro levantou vôo, alcançou umas das fendas do telhado e saiu para o canavial, onde agora já voltara a existir os espaços vazios do dia, que permitem ao inseto uma movimentação despreocupada entre as fissuras da realidade.

quarta-feira, outubro 10, 2007

MAR & CIA

MAR & CIA


não feche os olhos
não tranque a porta
não fique morta
de cansaço
não se aposente
não se retire
dos aposentos
não desfaleça
não se esqueça
que o laço solta
e um dia volta
do mar longínquo
o seu amado
com muito afinco
no regressar
e garças loucas
no céu da boca
para te dar

quinta-feira, setembro 20, 2007

DO SEU CALAR

DO SEU CALAR


meu amor
não se move
o meu love
só se perde
perde tanto
que nem say
sempre muda
sempre mudo
sempre sexy
como antes
e eu só peço
o que eu want
para mim:
alfabeto
nunca falte
há lá in?
cá tão out!

segunda-feira, julho 30, 2007

PIO PRIMEIRO

PIO PRIMEIRO


__________injusto hoje
________que eu bem-te-vi
_______você vem me ver
_______de busto nu
__________injusto tu
_________que não me beijas-
___________flor de língua
_____________sabiás que sou
_______________João de barro
_____________e me derreto
__________e me desgarro
________e pio arfante
______porque meu bando
___é qualquer banda
______que me encante

quinta-feira, julho 26, 2007

CÉSAR COMENTA




É o que tenho feito...

segunda-feira, julho 23, 2007

TENTATIVA EXPLICATIVA DE RETRATAR ALGUMAS CHAVES DIALOGAIS

Tentativa explicativa de retratar algumas chaves dialogais



I. Cumplicidade:

Quando os olhos engolem o corpo por dentro
e o corpo (por fora) simula

A escolha da flor pela abelha

A escolha do ser pelo outro

Frágil felicidade excludente


II. Decepção:

Ruga por onde fogem as vergonhas

A triste música dos sonhos

Lugar onde a solidão se acomoda

Um canto de imperfeição
(de preferência uma escuridão rejeitada
ou poesia sem tato)


III. Fernanda e Leandro:

Composição harmônica desconhecida

Espécie de organismo auto-regenerativo
ou redemoinho de signos

Chuvisco de tarde
(pelo gosto e cheiro agradáveis)

Sinônimo de Lê e Fel


IV. Dúvida:

Ração espiritual

Resultado de toda uma vida de esclarecimentos

O que há por detrás do céu
(como a caverna Platônica
e o sorriso amigável)

O fim de toda busca


V. Nós:

Solidão acompanhada

Quando as palavras não são medidas
(seja por excesso ou falta
a medida exata sempre se perde
um deslize irremediável intencional)

Resposta para quando a noite comunga poesia

Infração


VI. Ilbs:

Espelho do indeterminado

Cova alegre
(nas bochechas da terra)

Jeito com que se pega uma borboleta

Descanso de pedra
onde a cabeça parece flutuar
mas pousa (repousa)


VII. Batráquio:

Adepto a debater com estrelas

Indivíduo emancipado para sombra

Diz-se do recinto
ou recipiente — quando boca
para frases nulas

Estado vegetativo
(se os olhos dão frutos
batráquio está)


VIII. ...:

Comunicação via cumplicidade
(vide verbete I)

O frio dos ossos e sua voz

Pecado das línguas
(de tudo o que cala
o cerne)

Ponto infinal


IX. Intimidade:

Pólen febril de certas flores

O ritual das formigas compartilhando barata morta
(tanto para a barata quanto para as formigas
e o menino)

Aderência de verossimilhança indesejada
ou descartável aquisição de si mesmo

Perna evaporada na ebulição da espuma
(Bernardo Bertolucci o demonstrou em Os Sonhadores)


X. Vibração:

Estado hipnótico dos cágados
ou delírio

O tom vermelho da fotografia
em cômodos nauseabundos

Quando se está apto para usar os círculos n’água
(válido para fora e dentro do homem
tal como para a água-homem)

Figura do arrebatamento poético
ou pulga incoerente
(dá-se, às vezes, de esconder-se atrás da orelha da página)

terça-feira, maio 29, 2007

PARA A OUTRA PONTA DO MEU CORDÃO UMBILICAL

PARA A OUTRA PONTA DO MEU CORDÃO UMBILICAL


eu gostaria de escrever o mais belo poema
ausente em tudo de mim
e esculpido por borboletas
e perfumado de jasmim
e pontuado de estrelas apagadas
mas, em se tratando de você
não consigo ser poeta

gostaria de poder dedicar-lhe minhas melhores metáforas
com minhas imagens mais surpreendentes
só porque você pediu
e porque me olhou como minha mãe
e foi como se eu tivesse nascido naquele momento
e me deu vontade de chorar
pra te mostrar que sou saudável
mas, em se tratando de você
minhas letras se esvaem roxas

eu tentei ser fantástico, ser único
pra te presentear com um poema emoldurado
de palavras coloridas e música de passarinho
pois achei que assim você esperava
mas os meus versos saem conto
em se tratando de você
o meu parágrafo perde o ponto
final da história infinita
dos nossos umbigos profundos

eu queria usar palavras inesperadas e difíceis
ou apenas bonitas e engraçadas
como é você
eu queria dizer pulverizador
mas minhas idéias se pulverizam
e meu poema fica assim previsível e comum
como sou eu
em se tratando de você

quarta-feira, maio 16, 2007

LETRA

Promovido para parvo.

terça-feira, maio 15, 2007

DE

Para chegar perto, costumo manter distância.

sexta-feira, maio 11, 2007

LEITE

A inutilidade me utiliza.

quinta-feira, maio 03, 2007

TEMPESTADE

TEMPESTADE


temporada de temporais
no nosso telhado
trovões e raio
o só de sempre
deitado de lado
tá faltando cor
na nossa fachada
tá faltando brasa
na brisa de maio

temporada de temporais
no nosso telhado
mas chega pra cá
que não curto circuito
fechado

sexta-feira, abril 13, 2007

TEMPO VERBAL

TEMPO VERBAL


o certo é não ter vírgula
entre um e outro
e acabar com o travessão
atravessado na garganta

o certo é serem um ponto
nada de reticências
um único ponto
sincero e preciso
geometria perfeita
feita de corpos sobrepostos
postos à prova dos nove
minutos

segunda-feira, abril 09, 2007

RUMOR INTERNO

RUMOR INTERNO


Quando se pega pensando na
razão pessoal e filosófica
que leva os besouros suicidas
a se lançarem contra os pára-brisas
é que um homem percebe o quanto está realizado

Ali não precisávamos de mais nada
(a televisão mais próxima ficava a três dias de distância)
tínhamos tudo
e a terra nos chamava pelo nome

Éramos signos uns dos outros
e dignos
de sermos todos o mesmo
Num particular partilhado
cada partícula era o absoluto
e todo fundamental, uma parte

Mas voltamos...

Renata disse que
aquele veículo é um cocô do mundo
(eu concordei)
E Oliver
com uma (bela e) certa sede poética
apontando o horizonte:
Maceió é aquela luz!

(que luz teria orgulho de apagar o céu noturno?)

Havíamos levado tudo:
olhos eternos
amor em malotes
e um bom-rumor
E apenas voltou conosco
uma saudade triste e grata
acenando para o passado
pela janela traseira
do carro

segunda-feira, abril 02, 2007

ILHA DESERTA

ILHA DESERTA


No Havaí que havia aí
meu tornado virou sopro
o meu coco, açaí
minha casa pegou broca
tsunami, pororoca
meu silêncio virou cri
No Havaí que havia aí
meu Beethoven virou hula
o meu clássico, uma bula
minha harpia, colibri
minha erva virou pó
o meu clique virou pi
No Havaí que havia aí
minha costa virou grão
o meu pão virou migalha
minha tralha virou me
tempestade, então garoa
oceano, então lagoa
minha certeza virou se
No Havaí que havia aí
meu horizonte virou arco
o meu caro saiu free
o meu céu virou pintura
Oceania, Cingapura
Oiapoque virou Xuí
No aí que havia aqui
Havaí virou nordeste
armadilha virou teste
margarida, bacuri
No Havaí que havia aí
minha repulsa virou gozo
e minha calma, frenesi

domingo, abril 01, 2007

PENSAR NISSO

PENSAR NISSO


Roberta já havia recebido duas ligações do namorado impaciente quando subiu para o ônibus lotado. Namoravam há menos de dois meses e ela já se sentia sufocada. Por que sempre se sentia sufocada? Preferia não pensar muito nisso. Acabaria o namoro ainda naquela noite, debocharia dele e de seu ciúme excessivo, o deixaria falando sozinho em frente ao cinema, olhando para seu traseiro quando saísse rebolando debaixo da mini-saia estrategicamente vestida, e, livre e desimpedida, encontraria algumas amigas na Ponta Verde.
Não havia lugar vago onde pudesse sentar e já se sentia incomodada com os olhares insistentes que os homens lançavam para suas pernas. Acomodou-se de frente a um grupo que conversava com entusiasmo. O celular tocou, era ele, atendeu. “Já estou esperando há meia hora. Onde você está? Por que sempre tem que fazer isso? Você pensa que sou babaca?”, “No ônibus. Já estou chegando. Sim.”. Parou de responder às perguntas que ele fazia, pois, apesar de considerá-lo um estorvo, não sentia tanto prazer em derrubar a auto-estima dos namorados gradativamente, seu prazer estava em abandoná-los de súbito e vê-los arrastando-se por ela, feito um mendigo pedindo esmolas.
Enquanto seu namorado continuava a ladainha habitual, Roberta dedicou sua atenção ao grupo sentado à sua frente. Aqueles que antes conversavam animadamente, agora gargalhavam descontroladamente. Entraram numa crise de risos irresistível e não conseguiam parar. Roberta sentiu um músculo do rosto reagir. Ao seu lado, uma senhora robusta, prestando atenção ao grupo de jovens risonhos, caiu na gargalhada e, para Roberta, aquela situação tornou-se ainda mais inusitada e desconfortável. Sorriu com discrição, com o namorado gritando em seu ouvido direito. Sorriu sem saber exatamente o porquê, como se sua boca estivesse sendo puxava por um fio invisível e ela não conseguisse resistir.


Dona Gildete, uma senhora em seus 50 anos, redondos, perdeu o marido em um acidente. Um acidente vascular encefálico que fez o velho capotar no fim da estrada. Isso não é uma metáfora. Foram dois acidentes em um, o vascular encefálico e o do fusca que ele dirigia e que capotou no fim da Avenida Monte Castelo. Estavam despreparados, será que sempre se está despreparado para este tipo de coisa? Preferia não pensar muito nisso. Como não tiveram filhos, contou com a ajuda do irmão e dos sobrinhos para cuidar dos assuntos póstumos e, sete dias depois do enterro, dirigia-se para a Virgem dos Pobres, onde seria celebrada uma missa em memória do marido morto. Sozinha, entrou no ônibus que a levaria para a celebração. Não tinha problema, era bem pertinho.
Não costumava se locomover em meios de transporte público, seu marido sempre a levou para onde quisesse ir, no entanto, teve de vender o que restou do carro para pagar parte das dívidas com as quais o defunto a presenteou. Passou pela catraca, espremeu-se entre as pessoas e parou perto de uma jovem que exibia as pernas em uma mini-saia que mais parecia a parte inferior de um maiô. Deve ser prostituta, pensou. À sua frente, um grupo de três jovens conversava em voz alta, chamando a atenção de muitos no ônibus, incluindo a sua. Falavam sobre algo que aconteceu num acampamento e dona Gildete lembrou-se de sua juventude, de quando houvera acampado com alguns amigos da faculdade e conhecera Cléber. Sentiu vontade de rir pela lembrança gostosa das peripécias que se aprontam em locais como esse e voltou toda a sua atenção para os jovens tagarelas do ônibus.
Num determinado momento, quando os conversadores lembravam de um amigo que houvera corrido pelado pelo acampamento, se não a própria situação lúdica, algo a mais os fizera cair na gargalhada. Dona Gildete ficou surpresa que algo tão parecido houvesse acontecido com ela naquele acampamento há tantos anos, quando Cléber teve que correr para não ser pego com ela pelo irmão ciumento. Os três jovens do ônibus riam histericamente e ela, lembrando-se de Cléber nu pelo acampamento, esbarrando nas barracas e assustando alguns desavisados, não conseguiu conter o riso. Chegaria a pensar em como estaria Cléber, que há tanto tempo não via, mas se conteria nas lembranças, pois agora haveria de dedicar-se no luto ao marido com quem vivera por tantos anos. Mas, por enquanto, ela só queria rir. Rir como um daqueles jovens, sendo um deles, compartilhando as mesmas experiências. E riu de si mesma.


Remir e Alberto eram amigos desde não sabiam quando. Nasceram no mesmo dia e moravam na mesma rua. As festas de aniversário eram uma só. As brincadeiras eram as mesmas. Estudaram na mesma escola e na mesma faculdade. Um cursava jornalismo, o outro relações públicas; pagavam matérias na mesma turma e participaram da mesma formatura. O grupo de amigos sempre fora o mesmo, as paqueras e brigas também.
Alberto namorou Júlia, Remir namorou Gabriela, prima de Júlia. Alberto terminou o namoro com Júlia, Remir terminou com Gabriela. Seriam eles alguma espécie de almas gêmeas? Preferiam não pensar muito nisso. Aquele era o primeiro dia depois daqueles relacionamentos, que não duraram mais que quatro meses de farras e traições, e eles estavam saindo para comemorar. Ainda no terminal rodoviário, subiram para ocupar os melhores lugares no lotação, aqueles bem no centro, onde eles podiam se aproveitar das mocinhas delicadas que não conseguem o equilíbrio necessário para se manterem firmes sem trombar em quem está sentado. Foi então que uma ruiva sorridente sentou num dos bancos em frente aos que os amigos ocupavam. Renata.
Cumprimentaram-se alegres, os três. Renata havia estudado com eles na UFAL, era uma das piores alunas, mas uma das melhores companhias. Remir havia ficado com ela seis vezes e Alberto sete. Ela foi o pivô de uma disputa árdua de quem-pega-mais que durou algumas semanas e garantiu duas grades de cerveja para Alberto como prêmio. Cerveja da qual ela também bebeu, ao passo que veio a saber o motivo da comemoração, e, imediatamente, igualou o placar. Sete a sete.
O ônibus já estava cheio quando os três conversavam sobre o acampamento de despedida. Ocasião em que viveram uma experiência até então inaceitável de amor a três ou ménage a trois ou sexo grupal, orgia, bacanal, e, graças a essa cumplicidade, tudo parecia bem mais engraçado do que realmente fora. Como quando Rogério, despido, correu por todo o acampamento, em plena madrugada, convocando a todos para um banho de mar. Acabou indo sozinho e teve um ataque epiléptico dentro da água gelada. Estranho como o ataque epiléptico de um colega, dois anos depois, se torna algo hilário pelo simples fato de que, naquele momento, um amigo estava com o pau do outro na mão. Tiveram uma crise de risos. Remir aproveitou os movimentos das risadas para roçar, inadvertidamente, o cotovelo entre as pernas de uma mulher que estava em pé ao seu lado e usava uma não-saia que dava um vislumbre de sua calcinha vermelha. Tendo os outros dois percebido a atitude de Remir, o instante se tomou de uma graça ainda maior. Uma senhora toda vestida de preto caiu na gargalhada e só contribuiu para que eles soluçassem cada vez mais forte, e para que Remir repetisse seu roçar despercebido que a mulher, ao telefone, sequer notava.
Desceriam do ônibus e Renata morreria dois meses depois, sem que eles tivessem oportunidade para a balada que haveriam de se prometer minutos antes da despedida. Quanto à senhora de preto e à mulher da não-saia, ainda as veriam outras vezes, mas não se reconheceriam. Mas, por enquanto, rindo despretensiosamente, todos não passavam de palhaços.


Roberto, Glauco, Lourdes, Kelly e Damiana também estavam no ônibus, próximos aos jovens risonhos, e sorriram discretamente. Joana irritou-se com as risadas e afastou-se do grupo. Maria José, que estava na parte de trás do ônibus, esticou-se para ver o que acontecia e riu mesmo sem conseguir ver nenhum dos envolvidos. E o cobrador, Elias, ainda comentaria com o motorista, Gomes, sobre a mulher gostosa com a bunda de fora quando o ônibus esvaziasse.

sábado, março 17, 2007

BARULHO NA CIDADE

BARULHO NA CIDADE



Onde acordou, o silêncio era absoluto. A cabeça recostada na janela do ônibus, vazio. Esfregou as mãos nos olhos, respirou profundamente e olhou a rua deserta lá fora. O veículo parado, o mundo parado. Lembrou-se que era o único ser humano vivo na Terra.
Chorou por não ter mais pelo que chorar, por quem chorar. Sempre quisera saber onde daria aquela rua sem saída que era sua vida, mas era tão insignificante! Agora, sendo o último de sua espécie, aproximava-se de uma extinção inevitável da qual se sentia culpado. Se ao menos tivesse nascido mulher, Roger poderia tê-lo engravidado, ou mesmo Leandro, que adorava chamá-lo de puta. Mas não, nascera homem, um homem inoperante, mas com H maiúsculo.
Desceu do ônibus e avistou uma cidade calma, desagradável. Um terremoto de oito graus começou abruptamente e derrubou-o no chão, que se abria como uma porta para o inferno, e fez um letreiro de loja despencar sobre seu crânio.
Acordou com o choque de sua cabeça contra o vidro da janela do ônibus, que balançava e tremia. Por sorte, acordara em seu ponto de parada. Estava feliz com o barulho ensurdecedor da cidade. Desceu em frente ao Hospital das Clínicas para a cirurgia de mudança de sexo. Seu dia de Eva.




quinta-feira, março 08, 2007

NADA OU QUASE

NADA OU QUASE




Eis um recorte de uma das aventuras que vivi com meu amigo Vicente Marinho (acho que pelo gosto) na época em que filmávamos um documentário inútil. Tão ínfimo, ou mais, quanto nossas pretensões.


— Ei, garotos, o que vocês estão fazendo aí?
— Nada, moço, estamos só filmando algumas latas enferrujadas, folhas secas e borboletas que rastejam. Coisas desprezíveis.
— Hum... e de onde são vocês?
— Somos alunos. Estamos em pesquisa acadêmica.
Vinte minutos depois...
— À esquerda vocês podem ver o pássaro Tuiuiú e, logo ali na frente, um belo exemplar de águia-chilena.
— Nossa, é incrível! Chega a ser amedrontador!
— Olha aqui o Tuiuiú, Vicente. Eu sabia que ele era imenso assim.
— “... mais importante por seus pronomes do que por seu tamanho de crescer”.
— Exatamente!
— Você acha que deveríamos filmar isso?
— Não, não vamos desperdiçar bateria!
— Esse cara deve estar pensando que somos loucos.
— Moço, que pássaro é aquele que está sobrevoando a reserva? Ele voa tão baixo e parece ser lindo.
— Aquilo é um urubu, rapaz!
— Vai Vicente, não perde a oportunidade. Filma! Filma!


Aquele homem havia nos viciado em nada ou quase.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

SEM TÍTULO

Ninguém havia dito para ele que não era possível pular o muro do horizonte.
Ele pulou.
Do outro lado o infinito cintilava.
(Quando criança sonhava ter atrás da casa da madrinha uma floresta
e atrás da floresta o abismo e Marte)
Ninguém se aborreceu com sua audácia
mas não podia seguí-lo.
Era impossível para Ninguém pular o muro do horizonte.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

CONTEXTO

CONTEXTO


Fui encontrar no dicionário
uma palavra nada óbvia
que pudesse presenteá-la
com uma rima surpreendente.

Mas, veja só, minha flor,
vamos tomar cuidado,
guardemos nosso amor
no cofre atrás do armário.

Eu vi, eu vi:
ele é fungível!

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

HOJE A NOITE É BELA

HOJE A NOITE É BELA


Maria, encontrando-se grávida, disse a seu marido estéreo que se tratava de uma obra divina. José relutou, mas acabou acatando aquela explicação quando, num centro espírita, seu primo Gabriel manifestou a vontade de alguma entidade superior e anunciou que José deveria aceitar o menino que estava para nascer, batizando-lhe de Jesus.
Durante nove meses foram um casal dos mais felizes, até que Maria deu a luz a uma linda menina. José cortou os pulsos e Maria abandonou a pequena Estamira numa lata de lixo.

domingo, janeiro 28, 2007

EM GULA

EM GULA


da primeira vez
que lhe falei Leminski
você me perguntou
se era de comer

e eu não entendi que
estava diante de uma
exímia degustadora
de poemas

sábado, janeiro 13, 2007

RECADO MARÍTIMO

RECADO MARÍTIMO


O bilhetinho em guardanapo,
ele enrolou com esmero e riso.
Pôs na garrafa, então, vazia
do vinho tinto — noite longa!
Lançou-a mar e brisa adentro,
entre soluços rituais,
endereçando à sua dama.
E, assim, no dia que nasceu,
ela encontrou, ao pé da cama,
um beijo bêbado e, ademais,
embrulhadinho e todo seu,
um AMOR em letras garrafais.



Estive por todo esse tempo ausente graças à condição imprestável em que se encontra meu computador, mas cá estou postando algo "novo" (de aspas irônicas, não pelo tempo em que escrevi, mas pela ironia de se pretender escrever algo que seja novo, no visto de tudo já ter sido usado em algum lugar).