sexta-feira, novembro 30, 2007

AGRIPINO E A NOITE

Agripino e a Noite


Escurece no canavial e todos os vazios tomam a consistência abismal da noite. Um besouro que voava sobre o asfalto, à margem das estacas de cana, desviando-se do feixe luminoso do farol de um automóvel, penetra, zunindo, a densa vegetação e, ao ser engolido pelo breu, cala de imediato. Instantes depois, reaparece um pouco mais a frente com seu zunzum rasgado, mas é novamente sugado pelo silêncio negro. E não retorna.
O que durante o dia serve como passagem entre as folhas ásperas do canavial, seus cortantes espaços desocupados, sob a ocorrência de um céu ausente de luar e coberto por espessas nuvens escuras, torna-se uma confusa pasta preta, cuja matéria consiste em uma solidez vaporosa que pode tanto perpassar o corpo do besouro que ali se aventura cegamente, como bloqueá-lo de súbito. No misterioso decorrer das madrugadas, as distâncias se comprimem. Porém o que se chocou ao besouro atordoado não foi uma nesga da noite incorporada ao vazio. Poderia muito bem ter sido, e até seria mais aceitável, sendo tão mais palpável, àquela hora e à distância daquele canavial ao mais próximo ser humano, a escuridão sem forma, mas absoluta, do que o corpo incerto das coisas existentes, que, sem a iluminação adequada, aos olhos humanos, parecem menos dignas de confiança. Sob a inexistente luz esbranquiçada das estrelas encobertas, a parede de tijolos é quase transponível.
Trata-se de uma residência no meio do canavial, tão rente à vegetação que deve ter brotado do solo árido. Possivelmente fora plantada, como tudo no local. E nesta casa vive Agripino. Sentado frente a uma mesa solitária, entediado e ansioso, raspando com a unha a madeira degradada do móvel, ele assiste a passagem das horas. É muito monótono, para Agripino, viver naquele fim de lugar algum. Nunca há o que fazer. Não pode trabalhar no cultivo da cana-de-açúcar, ou mesmo em seu corte, pois é sempre escuro demais; também não se dedica a trabalhos domésticos, sendo tão tarde para este tipo de atividade; não há como sair para brincar, tampouco consegue alguém para conversar, já que é sempre hora de dormir. Desta forma, está sozinho em seu alvéolo noturno, onde, se passível é de se imaginar, a noite é ainda mais apertada e lenta.
O besouro pousou próximo à sua mão. No breu orgânico da casa, todo ser vivo parecia possuir uma claridade própria, e foi através da luz do besouro, caracterizada pelo zinido indiferente de suas asas, que Agripino atentou à sua presença. A mão do homem e o corpo do inseto encontravam-se a poucos centímetros de distância: as asas deste estremeciam enquanto os dedos daquele tamborilavam. Os olhos do homem analisavam a movimentação estranha do inseto sobre a mesa: insegura, mas precisa e rápida; rígida, sólida. Impossível seria captar tudo o que meditou Agripino no decorrer do tempo que despenderam a se encarar, até que os primeiros filetes de sol despontaram pelas minúsculas frestas do telhado a desintegrar o corpo da noite. Um raio de luz muito branco pousou sobre a mesa de madeira, exatamente no ponto em que jazia a mão de Agripino, que desapareceu de imediato, assim como sumiu todo o seu corpo à medida que a claridade da manhã penetrava a penumbra da casa e varria a presença da escuridão como faz uma lâmpada.
O besouro levantou vôo, alcançou umas das fendas do telhado e saiu para o canavial, onde agora já voltara a existir os espaços vazios do dia, que permitem ao inseto uma movimentação despreocupada entre as fissuras da realidade.