sexta-feira, novembro 28, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - FELICIDADE

ANTÔNIO DESLUMBRADO NA CAMINHADA CIRCULAR



A imensidão que acolhia Antônio antes que este resolvesse descobrir o mundo não era suficiente para suportar tudo o que nele havia de curiosidade e desejo efêmeros. Para o alívio da alma de Antônio Deslumbrado, era preciso abrir a porteira cuja cerca impedia a expansão do horizonte.

Em seu caminhar trôpego, Antônio Deslumbrado se depara com um velho andarilho conhecedor de diversos pedaços avulsos do mundo. Este lhe fala da austeridade de Machu Pichu, da dor no teatro japonês, do fervor do cinema indiano e das cores da sequidão. Entretanto, lamenta-se profundamente por ter perdido a consciência divisória de lar, a qual limitaria o espaço para onde gostaria de voltar e descansar neste instante.

— A felicidade é o nunca.

quarta-feira, novembro 26, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - SOLIDÃO

ANTÔNIO DESLUMBRADO NA BOATE SOLIDÃO



Estar só, para Antônio Deslumbrado, era vagar na imensidão dos dois mundos que habitava: o dentro e o fora. Em seu lar, não se corria o risco de ser interrompido em seu vazio, visto que o mínimo de animais que ele poderia encontrar naquelas bandas de secura, todos eles, respeitavam-no, ficando, assim, as divagações livres para suprimir o universo por completo.

Antônio Deslumbrado entende menos ainda a cidade à noite, quando as pessoas parecem querer desengolir algo que puseram pra dentro a contragosto. Pára em uma boate, lugar que lhe disseram ser ótimo para espairecer, e encontra um ninho de pessoas ávidas para vomitar seus males, esgueirando-se e se tocando em uma solidão desconcentrada.

— O que falta nesta cidade é chão para ficar só e não ser interferido pelos enganos do ego.

sexta-feira, novembro 21, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - MEMÓRIA

ANTÔNIO DESLUMBRADO NO TRONCO HISTÓRICO



Não é que Antônio Deslumbrado levasse uma vida frustrante. Onde vivia seco, qualquer coisa possuía extensões de seus sentimentos. Tudo a sua volta estava marcado com pegadas de suas recordações, marcas de seu amor e sua melancolia. O que o fez deixar seu mundo de espelhos foi a inquietude nascida no desejo de conhecer tudo o que não era ele próprio.

Antônio Deslumbrado chega ao logradouro que lhe disseram ser considerado o bairro histórico da cidade e se sente angustiado. Procura razões nos casarões antigos, na arquitetura luxuosa, nas alamedas simétricas, nos calçamentos de mosaico e nas luminárias dançantes, mas nada sente. Desiludido, pára e descansa sobre as raízes de uma velha árvore cujo tronco, ele vê, está repleto de declarações de amor escritas a canivete em tempos indizíveis.

— Graças a Deus! Finalmente encontrei o monumento histórico essencial deste lugar pobre de sinalizações!

quarta-feira, novembro 19, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - FOME

ANTÔNIO DESLUMBRADO NO PERCURSO DA FOME



Maria Doçura, todas as manhãs, dançava milho às galinhas. Não era simplesmente o ato de alimentá-las fisicamente; ela se comunicava e nutria suas almas através dos movimentos encantados e do calor dos seus poemas corporais.

Comendo desajeitado algo que conseguira numa bodega generosa, Antônio Deslumbrado é desafiado por um cão de rua. Muito magro, o animal emite um pedido fino e, após receber o alimento cedido por Antônio Deslumbrado, se põe a seguir seus passos.

— Venha comigo e descobrirás que comer apenas por fome não é o suficiente quando se conhece Maria Doçura, minha musa.

terça-feira, novembro 18, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - TRISTEZA

ANTÔNIO DESLUMBRADO NA PRAÇA DAS CAVEIRAS



Certas noites, depois que a casa envolvia-se num sono inebriante, Antônio Deslumbrado saltava a janela do quarto para pôr-se diante do cacto que o hipnotizava desde a infância. Seu formato era esbelto e lúgubre: assemelhava-se a um homem moribundo em uma súplica derradeira.

Antônio Deslumbrado percorrera diversas situações superficialmente desagradáveis até que, ao se aproximar de uma praça despedaçada, alguém o previne de que está entrando no ambiente mais triste do mundo. Lá, enroladas em pedaços podres de pano e papelão, pessoas feitas apenas de osso e pele gemem e se esquentam umas nas outras.

— Ora, estão cegos? Não é esta a real beleza da tristeza que deveriam exibir...

segunda-feira, novembro 17, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - NOITE

ANTÔNIO DESLUMBRADO NA NOITE ENDIADA



A densidade da escuridão onde vive Antônio Deslumbrado é tanta que se tem a impressão de que mais perto está o longínquo e que dificilmente se alcançará o que deveria estar a três passos. Desta forma, os habitantes do lugar, à noite, guiam-se mais pela lembrança do que pelos sentidos.

Passadas esquinas com postes de iluminação, semáforos, anúncios luminosos e faróis de automóveis, Antônio Deslumbrado avista um beco moribundo que abre uma pequena listra negra adjacente ao brilho incandescente da cidade anoitecida e penetra o breu.

— Enfim, um lugar de onde ainda não roubaram a graça essencial da madrugada...

sexta-feira, novembro 14, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - TEMPO

ANTÔNIO DESLUMBRADO NA NOITE ANACRÔNICA


Na secura em que vivia, Antônio Deslumbrado era abençoado pelos grilos. O passar do tempo, quando escuro, era contado na cadência do canto do inseto. Assim, a noite acontecia de mansinho e dava dobras em seu trajeto.

A cidade à noite apaga o fulgor das estrelas mais próximas e inibe as manifestações sonoras do tempo. As buzinas e os letreiros distraem os transeuntes e aceleram o compasso dos segundos. Por mais que se empenhe, é impossível para Antônio Deslumbrado prolongar a passagem, aqui fugaz, de um grilo em sua atividade frustrada.

— Quanto mais este mundo imenso alarga, tão maior se torna a minha casa!

quinta-feira, novembro 13, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - BONECAS

ANTÔNIO DESLUMBRADO NA CASA DAS BONECAS



Antônio Deslumbrado deixou seu lar aos cuidados de Maria Doçura, que o divinara para seu ainda moça. Na casa que compartilhavam, a secura era distraída pelos risos vívidos que Maria espalhava nas paredes feito enfeites de um natal permanente.

Divagando pelas ruas da descoberta recente, Antônio Deslumbrado acaba entrando numa loja de brinquedos, e nesta descobre a casa das bonecas. O cubículo muito iluminado parece refletir o brilho nos olhos e no sorriso satisfeito das meninas que apertam os objetos para ouvir as frases gravadas dentro deles: “Vamos brincar!”.

— Se vocês conhecessem Maria, minha musa, veriam o quanto é mais divertido quando não temos que ativar algo para nos sublimar, pois, assim, podemos sempre ser arrebatados de surpresa!

quarta-feira, novembro 12, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - CHEGADA

ANTÔNIO DESLUMBRADO NO ARCO DA CHEGADA


Quando desapareceu de onde vivia seco, Antônio deixou para trás apenas lembranças dos gestos sonhadores e da voz que anunciava: “volto somente quando descobrir do que é feito o mundo fora desta lonjura eterna”.

Depois da longa caminhada, Antônio Deslumbrado adentra a cidade barulhenta com pés taciturnos. Numa praça, crianças encantadas rodeiam o homem que faz Deus com marionetes maltrapilhas. Nada desvia a infância dos olhares congelados, sejam os das crianças, sejam os de Antônio Deslumbrado.

— Vai ver o mundo nem é tão vasto e desconhecido como dizem...

segunda-feira, novembro 10, 2008

CORROSIVO

Corrosivo


Mim é uma rata incompreendida. A paixão é coisa burra, repete Mim para Si, mas como não amar um gato assim gentil e de pêlos flutuantes? A paixão é coisa burra, disse um dia Si a Mim. Eu sou burra, eu sou burra, burra! Mim matutava e perambulava distraída. Então, craque!, foi capturada pela ratoeira e sequer comera o queijo. Burra, burra, burra! E a única preocupação da pequena rata em tão crítico momento era que a visse o gato estúpido, já que decerto tentaria salvá-la, e a paixão é coisa burra, muito burra, para Mim.

CLOÉ E OS ENCONTROS

CLOÉ E OS ENCONTROS



Cloé,
mulher de várias faces,
circula sem destino,
mas objetivada.

Aprendeu com as esquinas
um truque fabuloso:
de um olhar para outro,
a cidade, em burburinho,
embebeda-se em orgias
e orgasmos controlados
pelos raios invisíveis
dos desejos da
mulher.

Cloé,
mulher de várias faces,
saiu ilesa de guerras milenares
e arrebatamentos sem igual.

Agora, trabalha nas ruas
por felicidades mudas.

segunda-feira, novembro 03, 2008

ACERTADO

ACERTADO



fogo felino
num dado encantado
fulgor de menino