domingo, novembro 26, 2006

A TRISTE VIDA DE UM GATO DE RUA

A TRISTE VIDA DE UM GATO DE RUA



Era uma vez um gato chamado Leopoldo. Sempre quis começar um conto com essas três palavras: era uma vez. É, dos clichês, o mais atraente, porque dá à estória que está para começar um clima de fantasia, e logo se espera que a mesma acabe com e foram felizes para sempre. Gosto que minhas estórias tenham um teor fantástico, pois sempre me identifiquei com os contos de fadas, simpatizo com o otimismo impresso neles, e, mesmo agora que pretendo relatar fatos reais e dramáticos, começar este conto com era uma vez faz com que essa realidade excessivamente triste pareça distante da que se vive, e talvez se menospreze, de uma forma inocente, toda a dor contida nos acontecimentos para supervalorizar apenas os bons ensinamentos que a moral da história trará. Dessa forma, para os que querem ler um conto de fadas, esta será a estória de um felino que superou todas as dificuldades para ser bem-tratado e feliz, e para os que querem a verdade, esta será a história de um gato de rua e de sua morte drástica. E começa assim: Era uma vez um gato chamado Leopoldo. Nascido na esquina 22 de um conjunto habitacional qualquer, ele viveu suas primeiras semanas sob os cuidados de uma mãe cautelosa, que veio a falecer atropelada por um caminhão de lixo, deixando Leopoldo e seus dois irmãos sujeitos aos mais diversos perigos que a rua oferecia.
Logo na primeira semana de vida sem a mãe, os três filhotes se separaram. Bartolomeu, o que primeiro nasceu, um gato branco e de pêlo solto, foi levado numa sacola de plástico por uma mulher idosa. O segundo a nascer, Godofredo, listrado em tons de cinza e de calda longa, morreu apedrejado, emboscado por três moleques num beco. Foi uma armadilha da qual Leopoldo se salvou por pouco, pois, quando a primeira pedra atingiu o crânio de seu irmão, ele saltou o mais alto que pode, alcançando uma fenda numa parede que o ajudou a subir um muro alto pelo qual correu apavorado, enquanto ouvia os miados desesperados de seu irmão sendo torturado.
Leopoldo era realmente azarado. Poderia ter nascido siamês, já que sua mãe se envolvera com um gato de raça que rondava aquela região, mas nasceu vira-lata, assimétrico e ingênuo. Tinha os pêlos escassos e de uma coloração disforme que o fazia parecer estar sempre sujo: uma mistura de ferrugem, cinza e branco, com uma mancha preta no olho direito. Sem os irmãos, Leopoldo passou a ser o felino mais solitário da cadeia alimentar. Passava os dias vagando sem rumo, comunicava-se pouco com outros bichos, já que na maioria das vezes era desprezado e mal-tratado, comia qualquer coisa que conseguisse arrancar de algum mendigo que não tivesse nada e se enfiava em qualquer brecha escura para meditar. Raciocinava muito, principalmente sobre o comportamento humano. Era um gato antropólogo, com um tanto de sociólogo, filósofo e (por que não?) poeta.
Em uma certa manhã ensolarada de sábado, quando Leopoldo já tinha por volta de seus dois anos de idade — seus pêlos, se já eram escassos, agora mal existiam, já que os ferimentos por todo o corpo formaram crateras de pele na penugem —, a cidade em polvorosa, com seus humanos indo às praias e às feirinhas e às lavanderias e aos bares da esquina e às casas da sogra e aos cinemas e aos motéis e aos seus lugares nenhuns, indo ao encontro de si mesmos, e Leopoldo observando tudo isso, pensando no tédio de se atribuir compromissos inadiáveis, na perda de tempo que é ter algo a se fazer, quando pode se ter muito mais o que não se fazer, uma bicicleta atropelou o gato filósofo.
Talvez vocês venham a querer mais detalhes desse atropelamento, já que este ainda não é o momento da morte do protagonista desta história, mais precisamente, este é o instante da reviravolta, lá pelo meio do conto, onde as coisas começam a melhorar pro lado do herói. Nesse trecho, mesmo tendo certeza que o personagem vai morrer, o leitor torce para que tudo dê certo, e, quando tudo começa mesmo a dar certo, ele chega a desejar que o conto se encerre antes do trágico final preanunciado. Esforços vãos, não esqueçam que o gato vai morrer. Sendo assim, aí vão os detalhes: Leopoldo estava encolhido junto a um muro, miando baixo, reclamando do calor e da fome, enquanto via os carros passando apressados na rua bem a sua frente, quando um garoto de quinze anos veio correndo em sua direção e chutou seu estômago, algo que os humanos fazem muito para espantar o stress. Foi uma pancada tão forte que jogou o gato para a rua. Aterrorizado, ele perdeu a noção dos sentidos e correu desnorteado entre os carros que freavam bruscamente, o som das buzinas fazendo-o pular. Com a dificuldade de um desesperado, se esquivou de alguns veículos e conseguiu se aproximar da calçada oposta a da qual fora arremessado, no entanto, poucos centímetros da segurança, uma bicicleta atravessou seu caminho, fazendo-o, num ato de reflexo felino, pular para traz sem ver que outra bicicleta se aproximava, esta sim a bicicleta que o atropelou, esmagando sua pata direita dianteira. Miando de dor, mancou até um local aparentemente calmo, numa rua longe daquele tumulto, onde pôde deitar na sombra de uma roseira e lamber-se por vários minutos antes de dormir.
Leopoldo dormiu a poucos metros de distância de um casal que discutia. Era um senhor de aparência jovial, mas cujos cabelos eram totalmente brancos, e uma mulher gorda dentro de um vestido estampado tão rente ao corpo que a deixava com o formato de um botijão de gás. A gorda, que Leopoldo veio futuramente a chamar de Bolinha, reclamava da ousadia dos gatos de alguns moradores daquele local, que entravam no quintal da sua casa e defecavam por toda parte. O senhor de cabelos brancos, que o gato poeta chamou de Branquinho, apenas ouvia e tentava acalmar a mulher, que segurava uma vassoura e apontava para cada pessoa que passava em frente à sua porta. Depois de muita conversa, Bolinha entrou em sua casa e Branquinho veio andando em direção à sua, então encontrou Leopoldo tremendo e choramingando graças às dores no estômago e na pata esmagada. Neste ponto começa a valer à pena a vida de Leopoldo, é a chegada de sua fada madrinha. Branquinho sente carinho pelo gato sem dono e o adota, até então ele morava sozinho e o felino passa a ser sua única companhia na maior parte do tempo. Passou a ser tratado da melhor forma possível, com as melhores rações para gatos, que aos poucos foi melhorando sua aparência, mesmo com todas as falhas no pêlo, e recebendo leite da melhor qualidade, além de ter sua pata medicada, receber tratamento contra vermes e algum amor.
Branquinho tinha um sobrinho que vinha visitá-lo às vezes, uma criança de oito anos que adorava brincar com Leopoldo. O menino brincava de prender a respiração do gato, soltando apenas quando este já estava à beira da morte, esse era o único problema de morar ali com Branquinho, mas, sem dúvida, era um problema menor do que os que ele enfrentara vivendo na rua. Numa dessas vindas de Toc-Toc, o sobrinho, Leopoldo decidiu sair de casa pra não ter que aturar as brincadeiras doentias do garoto. Leopoldo não entendia essa necessidade que os humanos tinham de despejar sua agressividade em qualquer coisa que fosse; essa forma vaidosa de lidar com a suposta superioridade, como se, pelo fato de serem maiores e mais fortes, tivessem o direito à impunidade perante seres mais fracos; essa maneira egocêntrica de desrespeitar as diferenças. O gato sociólogo subiu para tomar ar nos telhados.
Neste parágrafo, finalmente, o gato morrerá. Aqui chegamos ao ápice da história para aqueles que estão lendo a verdade; para os que lêem o conto de fadas, o ápice ainda está por vir. Andando pelos telhados da vizinhança, Leopoldo sentiu um cheiro delicioso invadir suas narinas, chegando ao pulmão como se este fosse um estômago e quase saciando uma fome que não existia. Seguiu aquele odor como se tivesse sido laçado e estivesse sendo arrastado ao encontro do laçador. Era um quintal com uma goiabeira e algumas folhas secas no chão de terra batida. Próximo às raízes da árvore, repousava um enorme filé de carne de boi, a fonte do cheiro que atraíra o gato. Desceu o muro e foi direto comer a carne. Mordia rápido e voraz, há tempos não sentia aquele sabor inebriante, pois Branquinho tratava-o como se trata um bebê humano, com todos os cuidados de um pai coruja: comia apenas ração e tomava leite, dificilmente conseguia arrancar de seu dono um petisco como aquele. Acabou a carne rapidamente e voltou a subir o muro, depois o telhado e logo estava descendo pela frente da casa, na rua onde fora encontrado por seu dono, mas foi neste momento, enquanto dava seu último salto, que Leopoldo sentiu a pontada no estômago, e a dor que se espalhava por todo o corpo, e a respiração difícil, como se o ar estivesse sendo puxado através de um canudo, foi nesse instante que a dor mal possibilitou que continuasse a se mover, chegou até a porta de Branquinho e miou alto, seus últimos miados. Foi nesse instante também que os olhos embaçaram e sequer conseguiram reconhecer Bolinha saindo de sua casa e gritando ofensas a Branquinho, foi nessa hora que os ouvidos começaram a falhar e ele não entendeu o que Branquinho esbravejava para a mulher, não conseguiu entender que ela dizia que a culpa era dele, que o veneno era pra matar o gato que sujava seu quintal, foi nesse miserável minuto que ele perdeu o tato e não sentiu o último abraço de seu dono, perdeu a visão e não viu as lágrimas que escorriam dos olhos de Branquinho, perdeu-se de si e não se foi mais nada. O gato poeta morreu estrebuchando na calçada, como morrem os animais de rua (vide mendigos, loucos e andarilhos).
Quando chegou aqui, Leopoldo estava sereno, triste como uma pedra, de uma serenidade vegetal, sábia. Primeiro perguntou-me se Deus existia, pois não entendia como este pudera, em um castigo dirigido aos seres humanos devido sua fraqueza diante das tentações, acabar atingido todas as criaturas vivas com pestilências como a praga da dor e da fome. Falava calmamente, expunha suas meditações mais amargas causadas pela decepção de se morrer. Queria saber se era justo que a raça humana pudesse desfrutar de benefícios conseguidos pelo sofrimento de outros bichos, se era justo que todos pagassem por um erro irracional dos semelhantes de Deus. Não respondi a nenhum dos questionamentos do gato morto. Após ouvir toda a dor que aquele gênio sofrera, perguntei-lhe apenas se ele gostaria de renascer, e dessa vez como um humano, para que pudesse ter a oportunidade de não ser tratado como um objeto, um utensílio de outra raça. Leopoldo respondeu-me que jamais se sujeitaria a uma circunstância como aquela. Sabia que a cultura está baseada na sobrevivência do mais forte e não queria pensar em si mesmo como um ser que maltrata criaturas como a que ele fora, não queria se imaginar como alguém que abusa de um poder que lhe foi concedido para maltratar os mais fracos, ele sabia que, se aceitasse aquela proposta, se tornaria igual a todos os humanos, e não suportava sequer a idéia de poder vir a ser algo que despreza. E eis o meu conto de fadas: Leopoldo, o gato antropólogo, olhou-me profundamente, esboçou um sorriso brando e afastou-se saltando entre algumas nuvens. Foi feliz. Para sempre.

4 comentários:

Carol Almeida disse...

[como_escrever_um_conto.txt]

humanos são hanimais hestranhos, já nos disse arnaldo antunes. por isso eu prefiro as flores.
gatos são ingratos. eu fui branquinho de uma leopolda uma vez, que me abandonou depois de receber leite, ração e carinho.

bjs!

Luana disse...

Dear, adicionei vc no meu msn... Quero te fazer um convite! Assim que puder, entra em contato comigo no msn (nannacbran@yahoo.com.br), ou pelo e-mail (enfimtudodenovo@yahoo.com.br), tá?

Beijinhos...
:)

Anônimo disse...

Drico, achei teu blog por acaso e amei o teu conto da Triste vida de um Gato de Rua. Posso publicá-lo no nosso site?
www.ondaa.org
Aguardo teu contato por: comunicacao@ondaa.org
Abraço,
Claudia

Anônimo disse...

Tá publicado!!
Depois de umas correções do site, todos cadastrados serão avisados.
Bjs
Claudia