quarta-feira, maio 24, 2006

SONETO PRA VOCÊ

MEU BEM


Sendo você meu bem
o que haverá de mau?
E eu quem serei, ou qual,
sendo você, meu bem?

Se perguntarem quem
me tornei, ou se qual,
digo que estou normal,
digo que estou alguém.

E, já que é você, bem meu,
o que encontrou em si,
nestas palavras leu

o que virei aqui,
grita que foi só eu
que descobriste em ti.

quinta-feira, maio 18, 2006

DESVIO

POESIA


- Eu acabei de te conhecer, logo após ter te conhecido e vindo de sucessivas vezes que te conheci e nem lembro quantas. Parece que já te conheço de algum lugar (antes de ter te conhecido, que fique claro), porque não me é surpreendente esse seu jeito inovador de me deixar atônito, nem é assustador esse seu ar sombrio com que me queima a carne.
(Que leve, você sorrir assim, já havia feito isso antes?)



PROSA


Preocupada consigo
A tarde seguia

Passarinhos pousaram a seu pé
Seu canto não comovia
Em marcha de ré
A tarde seguia

Choveu um bocado só pra ver
Se alguma coisa ela ouvia
E, sem perceber,
A tarde seguia

Um homem chorou de dor demente
Pranto que a terra não lambia
Indiferente
A tarde seguia

Vieste tu e tocaste de leve
O rosto deste fim de dia
O instante breve
A tarde seguia

E, deixando o mar em cor de trigo,
Por essa mão já se perdia
Abraçada contigo
A tarde dormia

sábado, maio 06, 2006

PALAVRAS CRUZADAS

PALAVRAS CRUZADAS


Estou querendo dizer algo alegre... porque parece que tenho um esguicho de ilusões mórbidas, e eu hoje estou de sorriso convalescente, ou melhor, etéreo. Então eu vou sim dizer algo animador, e, por favor, não se assustem se parecer que sequer fui eu quem escreveu, já que, em mim, as frases têm o ditoso costume de se formar com palavras em ordem soturna (contraditório?). Mas eu vou pronunciar qualquer coisa de felicidade que de meu corpo teima escorrer em forma líquida de letras, não se assustem.
Primeiro convenço a mim mesmo de que posso fazê-lo, e sei que posso. Corro atrás de cada letra fugidia, de cada vocábulo brincalhão, difícil lidar com esse tipo de palavra, elas podem ser grandes companheiras, mas são orgulhosas e não são fáceis de conquistar. Consigo capturar uma interjeição no alto de uma pilha de vogais, a exclamação a denunciou. Depois encontro um artigo escondido atrás de uma árvore, que me mostra dois travessões disfarçados de folhas (artigos costumam ser dedos-duros, sempre denunciando os substantivos). Vejo uma palavra dando sopa na beira de um rio de sílabas átonas, mas, quando salto pra capturá-la, acabo tonificando as sílabas e na confusão deixo escapar uma das letras da palavra que perseguia, deformando-a e fazendo com que ela chore por ter perdido toda a felicidade que continha. Ainda consigo pegar um ponto cansado e uma parte oca de um verbo que se desprende de um casulo. Algumas letras começam a me rodear cantando e dançando, no começo penso em um modo de raptá-las todas de uma vez, mas percebo que seria impossível. Então, entro na roda e canto sem notas e orações, elas sorriem e me acompanham deliberadamente. Considero minha frase suficientemente composta... vamos ver se está feliz o bastante:

___arde__oco______________— a_______ver__o céu. Ah!

Confesso que meu mau-costume de ver entusiasmo na tristeza nem me fez perceber o quanto a frase lamentava. Foi o arde, que continuava a resmungar pela perda de sua primeira letra, quem me alertou para a escuridão da imagem. Procuro, então, soluções para minha triste frase feliz, não achei que seria tão difícil lhes dizer algo entusiasmante.
Estou andando sem destino e nenhuma consoante sorri, estou quase perdido e de olhos fechados quando esbarro em algo que cruza meu caminho. Com o choque, a pequena preposição cai desprotegida, eu a abraço. Quando a levo para junto da minha frase, ela cisma com um artigo que, segundo a própria, está mal alinhado e precisa de força comunicativa. Foi daí que eles comungaram e desalinharam ainda mais minha oração, o que animou a evolução da informação. Depois, sou interceptado por um verbo apressado que procura "o formador da frase alegre". Eu logo aceito que este deve ser eu, e dou a ele o aconchego que procura, ouvindo-o reclamar de sua rígida conjugação pretérita... será difícil solucionar este problema, mas ele mesmo sorri quando entende que deve juntar-se a um verbo que já se dispunha no lugar e que, unidos, formarão outro com sentido diferente do que ambos carregam. Por último, escuto um zumbido acompanhado de asas enormes que rodeiam um arbusto por aqui. Não consigo entender do que se trata, apenas ouço o zumbido e vejo o bater das asas. Sento em frente ao arbusto e medito por horas. Que lição! Palavra é imagem, eu me digo. Bastou que eu percebesse que se tratava de um inseto e o nome saltou sobre mim, rolando na grama e compondo o que eu considero ser minha frase feliz já completamente formada. E assim ela fica:

___arde__oco__— inseto______— a______viver do céu. Ah!

Comemoro bobamente o que parece uma celebração satisfatória da beleza. Algumas palavras sorriem comigo, mas não o arde. Este chora e estrebucha pedindo que eu encontre sua letra perdida, chama-me de burro, e aponta para uma falha substancial: o inseto oco perambula na agonia, não no gozo. As palavras cochicham, concordam, e eu nem tenho tempo para pensar que sou o mais feliz dos poetas.
Volto a procurar soluções para minha difícil construção frasal, e já começo a pensar que não sou capaz de tamanho invento. Não sou possuidor da melhor das estimas. Navegando nestes pensamentos quadrados, ouço um clique sob meus pés e, ao baixar os olhos, descubro que estou acionando a denotação de uma palavra, fazendo ela nela. O mesmo ela entra para minha frase como ação que estranha o todo (algo muito feliz de se fazer com denotações). Continuo minha busca, agora quase labiríntica, até que encontro quatro letras agonizando sob a sombra de uma rocha de imperativos. O arde começa a saltar de alegria ao rever sua parte faltosa, e volta a ser tarde. Duas das outras letras imprensam o vazio da imagem e sensibilizam, profundamente, a acidez de um verbo. A última das letras agonizantes artiga-se e vem apontar para minha criação como se dissesse, através de mim, "vejam o que eu estou pensando".

A tarde tocou — inseto______— a tecla viver do céu. Ah!

Agora eu sei que o dito não é melancólico. Mas o inseto está preso de uma forma inquietante dentro dos travessões, está quase deslocado do resto da frase, e isso me incomoda. Não estou satisfeito, já sei que é muito complicado achar alguma real satisfação em mim. O gargalhar das letras não permite mais que eu procure soluções para as deficiências da minha invenção gramatical, fico apenas a admirá-las.
Um corpo senta próximo a mim e pergunta como a tarde toca a tecla. Olho para o ser ao meu lado, mas não há ninguém ali além da voz que repete a pergunta. Como a tarde toca a tecla? Passo muito tempo pensando em como a tarde poderia tocar a tecla, se vou qualificar o toque, é preciso um advérbio. Mas qual? A inquietude do inseto continua a me causar incômodo e, enquanto encaro aquela prisão de travessões, um nome toma meu corpo, ao que eu cuspo uma significação sobre o inseto. E eis que se forma um advérbio e minha frase se completa:

A tarde tocou — insetamente — a tecla viver do céu. Ah!

E, assim, digo-lhes algo de feliz que, hoje, habitou em mim.
Mas permita que eu lhes conte um segredo:

Acredito que existe uma voz de outro poeta neste verso meu.

Mas isso é segredo nosso!