quinta-feira, outubro 05, 2006

UM POUCO DE AFETO II

UM POUCO DE AFETO II


Saíram do cinema sorridentes, como um típico casal de namorados que assiste a um romance e se satisfaz com o previsível final feliz da trama. Porém o que eles haviam visto não era um romance, tampouco teve um final feliz ou previsível, e eles não eram um típico casal de namorados, nem típicos nem namorados. Gargalhavam enquanto trombavam nas pessoas que lotavam o shopping, sem saber o que era mais engraçado: a forma como haviam despistado os amigos que os acompanhavam no cinema ou a incrível cumplicidade que haviam conseguido em tão pouco tempo de convívio, algo em torno de três horas.
Era possível ser feliz. Aprontaram pequenas travessuras, armaram pequenos furtos. Foi uma tarde fabulosa. Quando o sol se punha, visitaram uma exposição de uma artista plástica que estava sendo exibida numa galeria nova, Mônica adorava aquilo e Guto não soube recusar. Encantada que estava com o trabalho da artista desconhecida, Mônica logo a procurou para cumprimentá-la.
— Seu trabalho é magnífico! As cores, a sobreposição de formas, a visão mínima do que é soberbo, o traçado irregular nas...
— Aprecio seus elogios e fico lisonjeada que tenha gostado, minha querida.
J. H. parecia tão plástica quanto sua arte. Trocadilho bobo, visto que o material principal de sua arte era a madeira. Outro trocadilho bobo.
— Eu realmente adorei seu trabalho. Fico surpresa que ainda não a conhecesse.
— E você, meu filho? O que achou das peças?
Guto pigarreou. Deu uma olhada com o canto do olho direito para uma obra ali perto, tentando tirar uma conclusão naquele momento. Mas só conseguia perceber uma caixa vermelha com outras de tom semelhante cruzando umas as outras sem uma função aparente.
— Acho que é algo interessante para se fazer, mas que não entendo o suficiente para julgar.
J. H. sorriu, mas não um sorriso agradável, um sorriso debochado de alguém que acredita saber mais do que o outro. Mônica também sorriu, um sorriso discreto, este sim agradável. Guto não sorriu, nem para acompanhar Mônica naquele jogo de cumplicidade que continuavam travando. Saíram da galeria.
Guto e Mônica se conheceram no shopping naquele mesmo dia. Estava ela com um grupo de três amigas e ele com dois amigos inseparáveis. Sentaram-se em mesas paralelas e trocaram olhares. Hoje em dia é muito fácil: um olha de cá, o outro de lá, então ambos sorriem e em menos de quinze minutos estão beijando na boca. Mônica olhou de lá, Guto de cá, ele sorriu, ela sorriu de volta, ele foi até ela. “Meu nome é Gustavo”, “Oi, eu me chamo Mônica”, “Você também vai ao cinema?”, “Vamos sim!”, “Não querem ir conosco? A sessão já vai começar”, “Pode ser”. Mas não beijaram depois de quinze minutos. É que o filme não deixou, e eles até gostavam de conversar, e até tinham o que conversar, o que não era comum, eles mereciam aproveitar. Então, divertiram-se a tarde toda. Quando saíram do cinema, ela fingiu vacilar sobre a perna esquerda, disse que havia torcido o pé e pediu a Guto que a levasse nos braços. Saíram às pressas e deixaram seus amigos esperando enquanto tentavam dar um jeito naquilo, ainda os fizeram procurar gelo para pôr no tornozelo. Zombaram muito da peça que haviam pregado nos próprios amigos, e só agora, após saírem da galeria e sentarem-se em um banco sob uma fileira de árvores no centro de uma avenida pouco movimentada, eles pensaram em se beijar. Cinco horas depois do primeiro olhar. Isso significava que tinha tudo para ser especial. Era tudo tão maravilhosamente engraçado e real, e sem dor, nem no tornozelo. Beijaram-se.
— Fiquei bestificada com o talento daquela artista plástica.
— Ela é minha mãe, por falar nisso. Ela está com uma doença terminal, um câncer incurável.
— Nossa, não parece!
— Eu sei. Ela disfarça muito bem.
— Não, eu quis dizer que não parece com você. Não parece ser sua mãe.
— Eu sei. Ela disfarça muito bem.
Já no primeiro beijo.

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