sábado, setembro 23, 2006

UM POUCO DE AFETO I

UM POUCO DE AFETO I


As luzes acenderam e todos naquela sala, de repente, viram-se despidos. Olhavam-se com um sorriso envergonhado por estarem dividindo um segredo, afinal, todos ali acabavam de tomar conhecimento dos atos selvagens que o criminoso havia cometido impunemente. Todos eram seus cúmplices.
Protegidos pela escuridão, eles observavam Gustavo dilacerar suas vítimas. Jamais poderiam imaginar que aquele garoto pacato, que no fim de todas as tardes declamava poesia para os idosos de um asilo da cidadezinha onde morava, tivesse um instinto tão violento. Encolhiam-se na escuridão, vigiavam cada passo do assassino e de suas vítimas, não faziam nada para interferir, no fundo até vibravam com os atos animalescos do matador. Viram-no torturar um homem da forma mais grotesca: arrancou sua pele com um estilete, quebrou cada dente com um martelo, furou seus olhos com agulhas, costurou sua boca, arrancou cada unha e, finalmente, decepou sua cabeça. Mas as luzes acenderam, e acenderam assim que eles viram algo que confundiu tudo. O que era aquilo que Gustavo estava segurando? A própria cabeça? Não era Gustavo quem matava e devorava os velhinhos do asilo? Foram todos despidos e a sala iluminada. Agora dividiam um segredo e eram todos culpados, sem direito a defesa.
Gustavo estava sentado na terceira fila, repetindo cada frase de efeito que o filme desfilava entre uma morte e outra, nos poemas de seu xará. “Viu só? Todo Gustavo tem algo de artista”, dizia ele orgulhoso de ser homônimo do assassino serial que o filme apresentava, e todos os que estavam consigo riam. Havia uma tensão forte na sala. Nas últimas fileiras as pessoas estavam encolhidas, de olhos esbugalhados, suspirando. Nas cadeiras próximas às paredes, onde ficam os casais que não querem assistir ao filme, era impossível fugir ao clima do ambiente, as tentativas de beijo eram interrompidas por exclamações de surpresa que se espalhavam por todos os lado, e, de tempos em tempos, ouviam-se gritinhos assustados vindos de garotas que logo eram amparadas por seus heróicos namorados. “Se eu fosse mesmo o Gustavo matava essas fresquinhas que se assustam por qualquer bobagem”, um grupo na terceira fila de cadeiras prendeu o riso, produzindo um som parecido com um espirro.
Mas algo nos últimos segundos do filme não condizia com o resto da trama, estavam todos se sentindo enganados por Gustavo, o cruel assassino traíra até mesmo seus cúmplices. As luzes acenderam e todos estavam atônitos. Como um protesto, ou como se não acreditassem que aquilo fosse o fim, a maior parte dos presentes continuaram sentados vendo as letrinhas subindo na tela, esperançosos que Gustavo fosse aparecer ali para esfolar mais alguém, mostrado que, no fim das contas, era ele mesmo o canibal. Mas Gustavo não apareceu, e não haviam mais letrinhas para subir. Os da terceira fila levantaram-se, Gustavo ainda soltou alguma piada tentando fazer com que todos saíssem daquela situação constrangedora de estar se sentindo nu. Quando cruzaram a porta de saída da sala de exibição, viram que já se formava uma fila para assistir a sessão seguinte. Observaram bem aqueles rostos inocentes, futuros assassinos que seriam traídos e acabariam tornando-se os únicos reais culpados de uma série de atrocidades. Matariam sete velhinhos, comeriam parte de seus órgãos internos e, no final, teriam suas cabeças decepadas, seriam despidos e iluminados como num palco de teatro. Estavam prestes a dividir um segredo eterno e sequer se conheciam. Cruel.

3 comentários:

Anônimo disse...

A Macrabosidade do que se escreve reflete na penúltima palavra do título. Nunca ao contrário.

Anônimo disse...

"Macabrosidade"

Carol Almeida disse...

Lembrei de quando fui ver "O Albergue" e do "Massacre da Serra Elétrica". Ui, medo.

Bjo, Drico!