terça-feira, outubro 24, 2006

MANIFESTO DO CORAÇÃO PARTIDO

Manifesto do Coração Partido


EMO: emoção e hemorragia. Sangue e lágrimas.
Eu me sentia deslocado, inconfortavelmente diferente. Não tomava minha cerveja com um canudo direto na lata, não usava nenhuma espécie de produto de hidratação ou alisamento no cabelo, nem lápis para escurecer os olhos, e as listras da minha blusa eram grossas demais para que esta se passasse por uma daquelas dos irmãos metralha, que estavam espalhados por toda parte.
"Estou aqui a trabalho", eu pensava. Era minha desculpa para qualquer conhecido que casualmente me visse naquele lugar, mas eu sabia que nenhum conhecido meu poderia estar ali no meio daqueles seres homogêneos. Eu não imaginava que existissem tantos deles, e nem que todos fossem tão parecidos, como os habitantes de um planeta distante onde a sutil diferença entre um e outro está num dirigir de olhar enigmático. Assim como eles, suas músicas pareciam compor uma única e interminável canção falando do pranto que rolou depois que meu amor se foi, seguindo a mesma melodia berrada. Tudo ali era uma coisa só, um tal de repetir, ir e vir, avançar e volver, que, quanto mais se repetia, mais euforia causava. E se o tom das minhas palavras parece ameaçador é porque escrevo exatamente o que estava sentindo nas primeiras horas da noite que me atrevo a descrever aqui. Eu era um corpo estranho em um organismo fechado, acuado, com medo de ser abordado a qualquer momento por violentos anticorpos.
Eis que se inicia mais uma música da grande música que compunha a noite, e para eles aquela tinha um significado maior, como todas o tinham. Percebi isso porque, logo nos primeiros acordes da canção, um canguru vermelho veio pulando do fundo do salão para perto do palco, bem ao meu lado, onde um canguru amarelo o recebeu com saltos alegres. Começou, então, um concurso de saltos no meio da aglomeração. Cangurus de todas as cores, principalmente negros, pulavam ininterruptamente numa disputa eletrizante, era difícil saber qual estava pulando mais alto. Fiquei intrigado com aquele comportamento. Fiquei encantado, confesso. Foi então que um canguru roxo trombou em minhas costas, fazendo com que eu me aproximasse de um círculo de cangurus multicolores. "Estou aqui a trabalho", balbuciei. Mas um canguru branco, num salto desequilibrado, pisou meu pé com toda sua força. Num reflexo automático, em vista da dor que sentia, levantei a perna e comecei a pular segurando a ponta do pé, ao mesmo tempo em que soltei um grito de dor. Eles devem ter achado que eu cantava, pois virei alvo da atenção dos cangurus por alguns segundos, eu berrando de dor, eles de emoção, eu pulando de agonia, eles de euforia. Esta imagem, agora que reflito sobre ela, representa bem o que os integrantes desta tribo, EMO, carregam na essência de seu movimento, pelo menos para um leigo como eu, que só teve um contato verdadeiro por uma noite: dor e alegria formando uma coisa só. Sua música, o jeito melancólico que tanto os agrada, o sombrio e o luminoso, tudo não passa de uma brincadeira com as contradições, de um exercício de antítese, de dialética, pois, no fim, os contrários cabem sim em um mesmo conceito.
Quando a dor no meu pé passou, eu já estava envolvido com o papel que me atribuíram, eu estava gostando de ser um deles, e fiz de tudo para ser o melhor canguru pulador da disputa. Eu, um canguru inexperiente, um canguru jeans e de listras grossas, certamente não duraria muito na disputa. E não durei. Ofegante, fui para um canto e sentei para descansar enquanto observava o final do concurso, que acabou em uma espécie de luta coreografada, onde os participantes formam um círculo e se estapeiam ao ritmo frenético dos gritos da banda. Observei os arredores e percebi que era bem maior o número de pessoas que ficavam nos cantos das paredes do que os que estavam no centro pulando. Estavam em pleno ritual de acasalamento, um ritual macabro e tímido. Os que estavam se dispondo no centro, entre pulos e tapas, mostravam seus dotes, e, fazendo jus à seleção natural de Darwin, os mais fortes seriam o alvo dos olhares famintos daqueles que se encontravam nos cantos a observar. E é interessante como todo o desejo permanece no campo visual, não se vê muitos beijos ou abraços, as demonstrações de carinho são diferentes, como lançar uma lata de cerveja na cabeça de um amigo para representar um "eu te amo". A banda acabava de tocar sua última canção e os ânimos voltavam a esfriar, eles sorriam, e tudo era extremamente desinteressado.
Chegou, finalmente, a hora que todos esperavam, e que era a real razão que me levara àquele show. A esta altura eu já não me sentia ameaçado, já sabia me comportar como um deles, e nem as listras da minha blusa me incomodavam mais. Era o momento exato para que a atração principal se apresentasse, eu estava feliz. Esta banda, Fresno, possui uma diferença primordial dos demais grupos EMOs que se apresentaram naquela noite: suas letras e melodias são melhor trabalhadas, não que fujam do pranto que rolou depois que meu amor se foi, ou dos berros, a diferença aqui é que o pranto, às vezes, se torna poético, e o berro, quase sempre, melódico. Como definiu um amigo jornalista, Fresno é uma banda EMO de raiz. Só não me perguntem em qual solo está fincada esta raiz.
Os tímidos, que estavam distribuídos pelos cantos, vieram até a frente do palco e agora pairava um clima de idolatria que tornava o comportamento anterior bem mais irresponsável. Os integrantes da banda eram iguais a seu público, quatro cangurus coloridos. Havia cumplicidade em qualquer suspiro. Porém, algumas atitudes eu ainda não compreendia, como quando, em uma pausa entre uma música e outra, vendo que os músicos estavam envolvidos com o teor dramático-romântico das canções que interpretavam, os fãs gritavam tentativas de ofensa preconceituosa que confundiam meu entendimento do que aquelas pessoas pensavam de si mesmas, pois até então eu julgava que a sensibilidade fosse a marca maior daquele grupo, mas, com estas atitudes arrogantes, eles pareciam negar sua própria imagem, talvez se rendendo ao preconceito que recai sobre eles, afirmando, assim, que sensibilidade é coisa de veado. Então, enquanto a música tocava, todos eram tocados e cantavam emocionados, e, em suas pausas, alguns demonstravam uma personalidade agressiva que tentava negar aquilo que os caracterizava e tornava alvo de chacota. Acredito que o preconceito trabalhará seus cérebros até que amadureçam e descubram que sensibilidade não é coisa de veado e que não precisam daquelas demonstrações de resistência infundada. Mas, por outro lado, creio que com este amadurecimento eles deixariam de ser EMOs e perderiam a contradição que tanto me impressionou nesta experiência. Sendo assim, todos estes elementos só contribuem para tornar a tribo ainda mais interessante e rica em diferenças. Se você acha que conhece a contradição, vá a um show de EMO e modifique suas impressões.

quarta-feira, outubro 18, 2006

MENOS PREZAR

MENOS PREZAR


Antes de mim, teu coração
Já cheguei sem nunca ter vindo
Tendo as dúvidas do findo
Em vias de ser inverso

Qual o alcance do meu verso?
Qual é a cor do meu nome?
E nos sentidos do universo
___Por que você não some?
___Por que você não some?
___Por que você não some?

domingo, outubro 15, 2006

BEIJA-FLOR (OU MADRIGAL ERÓTICO)

BEIJA-FLOR (OU MADRIGAL ERÓTICO)


fico suspenso
p a r a d o n o a r

embriago-me, penso
em despetalar

estático e tenso
provando teu néctar

sábado, outubro 14, 2006

POLVO

POLVO


Quem disse que o abraço
é essa coisa de braço
ou de tentáculo?
Meu abraço está no fascínio
que, pela água, ondulo
(ao redor e em mim)
sem nunca desaparecer

— Abraçar não tem domínio!

quinta-feira, outubro 12, 2006

CARANGUEJO

CARANGUEJO


é tão óbvio
que o meio do céu
esteja no centro
da Terra

domingo, outubro 08, 2006

MORCEGO

MORCEGO



— Meu trabalho é fazer que a noite me ingresse.

quinta-feira, outubro 05, 2006

UM POUCO DE AFETO II

UM POUCO DE AFETO II


Saíram do cinema sorridentes, como um típico casal de namorados que assiste a um romance e se satisfaz com o previsível final feliz da trama. Porém o que eles haviam visto não era um romance, tampouco teve um final feliz ou previsível, e eles não eram um típico casal de namorados, nem típicos nem namorados. Gargalhavam enquanto trombavam nas pessoas que lotavam o shopping, sem saber o que era mais engraçado: a forma como haviam despistado os amigos que os acompanhavam no cinema ou a incrível cumplicidade que haviam conseguido em tão pouco tempo de convívio, algo em torno de três horas.
Era possível ser feliz. Aprontaram pequenas travessuras, armaram pequenos furtos. Foi uma tarde fabulosa. Quando o sol se punha, visitaram uma exposição de uma artista plástica que estava sendo exibida numa galeria nova, Mônica adorava aquilo e Guto não soube recusar. Encantada que estava com o trabalho da artista desconhecida, Mônica logo a procurou para cumprimentá-la.
— Seu trabalho é magnífico! As cores, a sobreposição de formas, a visão mínima do que é soberbo, o traçado irregular nas...
— Aprecio seus elogios e fico lisonjeada que tenha gostado, minha querida.
J. H. parecia tão plástica quanto sua arte. Trocadilho bobo, visto que o material principal de sua arte era a madeira. Outro trocadilho bobo.
— Eu realmente adorei seu trabalho. Fico surpresa que ainda não a conhecesse.
— E você, meu filho? O que achou das peças?
Guto pigarreou. Deu uma olhada com o canto do olho direito para uma obra ali perto, tentando tirar uma conclusão naquele momento. Mas só conseguia perceber uma caixa vermelha com outras de tom semelhante cruzando umas as outras sem uma função aparente.
— Acho que é algo interessante para se fazer, mas que não entendo o suficiente para julgar.
J. H. sorriu, mas não um sorriso agradável, um sorriso debochado de alguém que acredita saber mais do que o outro. Mônica também sorriu, um sorriso discreto, este sim agradável. Guto não sorriu, nem para acompanhar Mônica naquele jogo de cumplicidade que continuavam travando. Saíram da galeria.
Guto e Mônica se conheceram no shopping naquele mesmo dia. Estava ela com um grupo de três amigas e ele com dois amigos inseparáveis. Sentaram-se em mesas paralelas e trocaram olhares. Hoje em dia é muito fácil: um olha de cá, o outro de lá, então ambos sorriem e em menos de quinze minutos estão beijando na boca. Mônica olhou de lá, Guto de cá, ele sorriu, ela sorriu de volta, ele foi até ela. “Meu nome é Gustavo”, “Oi, eu me chamo Mônica”, “Você também vai ao cinema?”, “Vamos sim!”, “Não querem ir conosco? A sessão já vai começar”, “Pode ser”. Mas não beijaram depois de quinze minutos. É que o filme não deixou, e eles até gostavam de conversar, e até tinham o que conversar, o que não era comum, eles mereciam aproveitar. Então, divertiram-se a tarde toda. Quando saíram do cinema, ela fingiu vacilar sobre a perna esquerda, disse que havia torcido o pé e pediu a Guto que a levasse nos braços. Saíram às pressas e deixaram seus amigos esperando enquanto tentavam dar um jeito naquilo, ainda os fizeram procurar gelo para pôr no tornozelo. Zombaram muito da peça que haviam pregado nos próprios amigos, e só agora, após saírem da galeria e sentarem-se em um banco sob uma fileira de árvores no centro de uma avenida pouco movimentada, eles pensaram em se beijar. Cinco horas depois do primeiro olhar. Isso significava que tinha tudo para ser especial. Era tudo tão maravilhosamente engraçado e real, e sem dor, nem no tornozelo. Beijaram-se.
— Fiquei bestificada com o talento daquela artista plástica.
— Ela é minha mãe, por falar nisso. Ela está com uma doença terminal, um câncer incurável.
— Nossa, não parece!
— Eu sei. Ela disfarça muito bem.
— Não, eu quis dizer que não parece com você. Não parece ser sua mãe.
— Eu sei. Ela disfarça muito bem.
Já no primeiro beijo.